Desde muito pequena que os telhados dos prédios no bairro de Lisboa onde eu vivia e que observava os que ficavam mais de perto da minha casa, foram sempre um mistério para mim. Sonhava ir pé ante pé por cima das telhas, talvez até conseguisse ir mais longe sem nunca deixar de caminhar sobre as telhas marselhesas que contrariamente às da minha casa que eram recentes, as outras eram muito antigas onde até cresciam ervas.
Os gatos dos telhados corriam de um lado para o outro, livremente. A minha mãe fazia comida especial para eles (peixe e arroz) e eles habituaram-se àquele carinho. Andavam todos gordos, o pelo lustroso e era vê-los ao sol a fazer a sua higiene. O problema era na altura do cio das gatas, porque as brigas e lutas quando aconteciam à noite não me deixavam dormir. De manhã os que a minha mãe acarinhava apareciam todos feridos com golpes e até com falta de pelo.
Havia um prédio perto em que as janelas das "águas-furtadas" davam para o lado da minha casa mas não me lembro de ver alguém às janelas. Salvo uma unica vez uma senhora desceu pelo telhado, a chorar muito e pediu ajuda à minha mãe. Dizia que o marido a queria matar e ela saltou pela janela da casa de banho.
Há tempos consultei o "google maps" e consegui visualizar aquela zona mas não vi gatos.
Tudo o que conto aqui está muito presente na minha memoria e a explicação que eu encontro para isso, já passou meio século, foi precisamente devido ao facto de eu nunca ter consumado o meu sonho que foi de caminhar por cima daqueles telhados com telhas marselhesas.
Maria Isabel Quental (Flor)